Uma das coisas mais maravilhosas desse novo boom de publicação de autoras latinas e caribenhas, especialmente por editoras menores que têm feito um trabalho de curadoria fenomenal, é poder ler obras e autoras que talvez eu demorasse uma vida para acessar esperando a boa vontade do mercado editorial mais tradicional. Poder botar meus pézinhos nas águas do Caribe virtualmente é delicioso demais.
As autoras colombianas têm me fascinado por sua ousadia de escrita, engenho da palavra e por tensionar suas próprias fronteiras. Foi assim quando li A Cachorra, de Pilar Quintana, e me impressionei com a maternidade em crise e a forma intensa de escrita. Ler Os cristais do Sal, publicado em 2021 pela minha xodózinha Editora Moinhos, me trouxe saberes plurais, diversos e completamente novos.
Vencedor do Premio Nacional de Novela Elisa Mújica 2018, o livro de Cristina Bendek tem uma narrativa arrastada, com tonalidades que oscilam entre a terra e a água, própria de cidades praianas e em alguns momentos quase senti o sal nos lábios. No entanto, se engana quem pensa que é uma narrativa superficial e pueril, muito pelo contrário, nas suas quase 200 páginas somos apresentados a muita muita informação.
Victoria Baruq, nossa protagonista, está de volta à San Andrés, sua cidade natal, depois de longa temporada vivendo no México. É pela foto que encontra de Rebecca, sua tataravó, que a personagem começa a questionar suas próprias origens, e sua identidade.
Victória vive uma identidade cambiante, de um entre-lugar, não é vista pela maioria como isleña, tampouco raizal, mas também não pertence ao continente e às outras culturais. Victoria e Rebecca parecem partilhar muito mais do que a protagonista imagina.
Na medida que Victoria se descobre, ela também nos conta das tensões e conflitos na Colômbia, algo que eu, particularmente, pouco conhecia. Os raizais vivem há décadas no meio de disputas e tensões entre a Colômbia e a Nicarágua e amargam as tentativas constantes de verem seu território vilipendiado por tais questões e pelo avanço constante do turismo predatório na ilha de San Andrés.
Os raizais, hoje reconhecidos como povo originário, é constituído por povos minoritários , como os africanos trazidos escravizados para a Colômbia. Longe de Bogotá e do continente, sofrendo com o descaso público, resistem em não ver perdidas suas tradições e existências.
E, tudo isso, Cristina traz para dentro do texto. O reggae, o zouk, as disputas políticas, o povo raizal que não se reconhece como colombiano, a língua crioula misturada ao inglês e ao espanhol, a precariedade da vida praiana, a falta de bom-senso dos turistas, os furacões à espreita.
Acho bem bonito como as autoras contemporâneas colombianas têm deslocado a narrativa do continente e trazido para onde ela encontra encruzilhadas, bifurcações, entrelaçamentos outros que remontam a uma história tantas vezes contada na América Latina: o processo violento de colonização; a escravização de povos africanos em diáspora; as plantações; os povos originários que lutam para existir; e a memória contra-canônica que resiste. A Colômbia, para além dos preconceitos, das visões tão simplistas e precárias que temos se abre em cores, cheiros, histórias e memórias diversas e pluriversais.
A meu ver, Cristina parece trazer muito de si para a ficção, mesmo que isso não esteja completamente exposto. E se o faz, é com tamanha generosidade ao leitor. Explicando e contextualizando, mas deixando que possamos nos aventurar por nossas próprias pesquisas e também na fruição literária. O final, surpreendente e belíssimo, me aqueceu o coração.
Curiosamente, esta foi minha primeira leitura de um início de 2023 que já me parece tão distante. Tenho algumas questões com a escolha de termos e a forma como algumas construções são feitas, mas quando percebo a pesquisa realizada pela Cristina, as tensões moduladas, e toda a perspectiva de transgressão histórica operada, o livro realmente se agiganta. Feliz demais com essas descobertas.
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Sobre a autora (a partir da publicação da Editora Moinhos):
Cristina Bendek é colombiana de San Andrés. Voltou em 2016 para a ilha para se dedicar à escrita. Segundo o site da Moinhos, além da escrita ela se dedica ao empreendedorismo, ao jornalismo e à crítica. As questões da fronteira, da identidade cultural de San Andrés e outras questões políticas, sociais e culturais estão no radar da autora e pensadora.
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Foto do site escritores.org |
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