Sistema do tato | Alejandra Costamagna 🇨🇱

Memória, eu ando perseguindo a memória. Não sei se por falta ou por paixão. E se tem uma coisa que a literatura chilena faz é elaborar o passado. Sistema do Tato, escrito por Alejandra Costamagna, traduzido por Mariana Sanchez e publicado pela editora Moinhos, foi um encontro bem bonito.

Ania é uma mulher chilena que  precisa voltar à Argentina, terra de seus pais, para representar o pai no leito de morte de um parente distante. Ao chegar, se hospeda na casa dos avós e ali nos somos tragados pelo tempo e verdadeiros portais se abrem. Calma, não estamos falando de ficção especulativa, mas de um romance documental poderoso sobre os entrelaçamentos entre passado e presente.

A obra é narrada em duas mechas do tempo. No presente, Ania nos conta suas angústias e descobertas, nos mostra uma vida cheia de lacunas e faltas, atravessada pela ausência da mãe e pelas relações incompletas com os que estão à sua volta.



No passado, Agustín, o filho de sua tia-avó Nélida, nos conta o peso de ser uma pessoa completamente deslocada, sozinha, e cujas limitações dessa existência quase triste nos levam aos limites da empatia. Sim, porque Agustín sofre e por sofrer tanto emocionalmente acaba por tomar atitudes muitas vezes incompreensíveis.

Ligados por uma caixa de recordações, Ania e Agustín se misturam na ausência, no desejo de pertencer, de ter um lugar no mundo. E muitas vezes falham em conseguir isso. Eu sou realmente apaixonada por esse tipo de artifício literário, essa caixa de sonhos e existências, capaz de conservar em si um portal no tempo. Essas fabulações a partir dos vestígios da vida dos outros é fascinante.


O livro, extremamente bem construído, nos mostra os segredos, os não-ditos dessa família que parece uma constelação de pessoas distantes mesmo vivendo no mesmo núcleo. Cheio de fotos, cartas, registros, exercícios práticos de datilografia, somos apresentados aos fragmentos dessas pessoas que perigam se perder.

Aqui, nos são apresentadas as fragilidades, as contradições. Não há heróis, mas pessoas demasiadamente humanas. E é Ania que, ao descobrir esse tesouro, nos leva para conhecer a sua história. Dentro da casa quase vazia, ela vai enchendo de vida, recontando as histórias por meio desses artefatos, e preenchendo os espaços e silêncios. E aí, é Agustín quem se apresenta a nós de maneira também belíssima.

Com uma diferença enorme de idade entre os dois, Agustín e Ana dialogam apesar da distância temporal, e mostram um arco narrativo entrelaçado e em espiral. Ecos narrativos, ecos que reverberam e voltam, tocando e influenciando as jornadas. Nélida, a tia avó, outra figura também interessante, nos é apresentada pelo olhar encantados que se encontram no tempo.


Belo, fluido, intenso e muitas vezes sufocante com tantas informações, Sistema do Tato é um mergulho pela memória, pela necessidade de não esquecer, pelo desejo de permanência e por uma consciência muito grande da própria literatura. As histórias são recontadas.

Ania não poderia voltar para o Chile do mesmo jeito que chegou e nós também não saímos os mesmos deste texto. Essa foi uma leitura muito gostosa da parceria da Moinhos que me fez reafirmar minha paixão por autoras chilenas. 


E para ser sincera, fiquei bem feliz de não ter a ditadura como temática central, ainda que eu achei que os deslocamentos, despertencimentos e desterritorializações causados pelos estados de exceção argentinos e italianos acabem aparecendo inevitavelmente no texto.

A curadoria da moinhos segue deixando meu coração em festa. 


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Sobre a autora:

(Retirado do site da Moinhos)


Alejandra Costamagna é chilena de Santiago Jornalista e doutora em literatura, publicou os romances En voz baja (1996), Ciudadano en retiro (1998), Cansado ya del sol (2002) e Dile que no estoy (2007); os livros de contos Malas noches (2000), Últimos fuegos (2005), Animales domésticos (2011) e Había una vez un pájaro (2013); bem como as crônicas de Cruce de peatones (2012). No Brasil tem publicados Sistema do Tato e Impossível sair da terra, ambos pela editora Moinhos. Em 2003, obteve uma bolsa de estudos do International Writing Program da Universidade de Iowa, Estados Unidos. Sua obra foi traduzida ao italiano, francês e coreano. Na Alemanha, recebeu o Prêmio Literário Anna Seghers de melhor autor latino-americano de 2008.


 

 

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