A Estirpe | Carla Maliandi 🇦🇷

Ontem foi o lançamento de A Estirpe, de Carla Maliandi, que saiu esse ano pela Editora Moinhos,  e eu resolvi trazer para vocês um pouco das minhas impressões de leitura desse livro que me fez pensar tanta coisa que olha.... nem sei dizer só sei sentir! A ótima tradução ficou por conta do Sérgio Karam. 

O mote da história é interessantíssimo: no dia do seu aniversário de 40 anos, Ana sofre um acidente. Um globo de espelhado cai em sua cabeça e ela perde a memória. Juro, a memória, sempre ela, me levando para lugares incríveis!

Então Ana precisa reaprender tudo: o  nome do filho, do marido, a organizar as suas ideias, formar frases e entender especialmente quem ela é no mundo. Aliás, essa história do filho me fez pensar muito como seria um mundo sem o meio e eu cheguei à conclusão que não quero (risos).


Já em casa, ela descobre que está escrevendo um livro que traz a sua genealogia em tensão por tratar da Guerra do Chaco - conflito ente Bolívia e Paraguai que deixou mais de 90 mil mortos - e de um tataravô que tocava na banda que atuava na guerra. Uma banda marcial dentro de um momento bélico me parece uma metáfora certeira para o uso da arte pelas tecnologias de morte.

Enquanto Ana vai tentando elaborar esse passado bastante controverso, novas possibilidades de existência vão se descortinando para ela. Ao descobrir a história de China María, menina sequestrada por seu tataravó para ser trabalhadora doméstica em um serviço análogo à escravidão por toda a sua vida, sem saber ao certo como, Ana também coloca um monte de saberes oficiais e históricos, traumas individuais e coletivos em perspectiva. 

É bonito ver como Carla costura a dialética entre memória e esquecimento. Entre o desejo de lembrar e a impossibilidade de fazê-lo. É pela trança indígena, e que aparece nessa capa minimalista belíssima, que as teias da trama vão sendo apresentadas. 

Num ato ousado, Ana se apropria da trança e passa a usá-la. Assim, incorpora, conjura, invoca uma mulher oriunda de povos originários e assim passa a compreender certas questões flanando entre a realidade e o onírico (bem bruxa, sabe). E eu gosto das discussões estéticas e éticas que podemos ter a partir desse ato. 


Num jogo de pertencimento e desterro, presente no deserto do esquecimento, Ana entende que está num entre lugar e que nada é como parece a um primeiro olhar.

Um ponto alto da trama é ver a belíssima a relação que se constrói entre Ana e Gregório, o homem que retorce as mãos, ele sim descendente de povos originários que vai mostrando para Ana as implicações dessas descobertas e de suas posturas. Vivendo para compreender rastros e vestígios de existências tão antigas e tentando materializar sua própria realidade, a protagonista nos leva por labirintos muito instigantes.


Sinceramente, para mim, A estirpe é ainda melhor, mais bonito e bem construído do que Quarto Alemão, que é também é um livro que me ganhou muitíssimo. E eu, que nunca gostei muito desta palavra, estirpe, por achar extremamente pomposa e com ares elitistas, consegui perceber as nuances de significado e sentido que se abrem quando pensamos que a genealogia pode ser também uma armadilha, uma invenção, uma mentira mal contada e perpetuada. 

Carla, eu estou simplesmente apaixonada por esse livro. Você constrói uma narrativa curta, intensa, vívida, e muito real. Leiam!

 

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Sobre a autora: (extraído do site da moinhos)


Carla Maliandi é argentina de Buenos Aires, mas nasceu na Venezuela. Realizou seus estudos de graduação e pós-graduação na Universidad Nacional de Las Artes, especializando-se como dramaturga. Como diretora e dramaturga, dirigiu sete obras e participou em diversos festivais nacionais e internacionais. Formou o coletivo Rioplatensas com o qual desenvolveu um programa de televisão e uma publicação semestral com o mesmo nome. Sua primeira novela La habitación alemana (2017) foi traduzida ao inglês, alemão, francês e português e seus direitos adquirido cinema. Sua segunda novela, La estirpe, foi lançada em 2021 e ganhou versão em audiobook narrado pela própria autora. A Moinhos publicou O quarto alemão (2020) e agora traz A estirpe para o Brasil, primeiro país a traduzir a obra para outro idioma.

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