O 11 de setembro será sempre uma data dura para a América Latina. Há 50 anos, Pinochet dava seu golpe de estado no Chile e instituía uma das ditaduras mais perversas do Cone Sul. Estima-se que mais de 40 mil pessoas tenham sido , torturadas e, pelo menos, 3.200 tenham morrido ou desaparecido ao longo de 17 anos de ditadura, mas a verdade é que essa quantidade deve ser maior.
O Chile foi devastado por tamanha perversidade e me lembro de que quando estive lá, há 10 anos, esse ainda era um trauma muito pulsante na vida de todos. Sinceramente acho difícil que isso se recupere tão pronto.
Beatriz Sarlo, que é uma importante intelectual argentina, costuma dizer que o desejo de memória na América Latina passa por repensar as ditaduras e reelaborar esses passados obscuros.
E é isso que as autoras contemporâneas têm feito com tanta maestria. A subtração, livro de Alia Trabucco Zerán, e publicado pela Moinhos, é um livro tão bonito e cheio camadas que eu poderia falar horas sobre ele. Passei ele na frente, na minha lista de leitura, sem pudores.
Felipe, Iquela e Paloma são filhos da ditadura do Chile, filhos de pessoas que tentaram resistir à opressão e, por isso, são sobreviventes de um tempo que nublou as subjetividades, e deixou rastros de medo e terror.
Narrado metade por Felipe e metade por Iquela (ela sempre em capítulos entre parênteses), o livro mostra os muito olhares a respeito dos mesmos acontecimentos que vão se desdobrando em uma narrativa que se constrói para entrar numa vertigem alucinante. E aí delírio e realidade se fundem para contar uma história de trauma, resgate dos mortos e tentativa de compreender feridas individuais e coletivas.
É quando Paloma retorna ao Chile para resgatar o corpo da mãe no Uruguai que verdades vêm à tona. Misturando passado, presente e futuro, implodindo as linhas temporais, Alia nos traz uma narrativa que pensa a ficção como uma forma de elaborar e narrar a história a contrapelo, a revelia dos dados oficiais. Dos escombros do horror, essas histórias se levantam.
Resgatar o corpo da mãe, na impossibilidade de resgatar tantos outros e tantas memórias, é emblemático. Descobrir que esses pais, com todas as suas lutas e contradições, viveram, choraram, sofreram além de humanizar a resistência coloca em contraponto um desejo potente de que as gerações seguintes continuem o legado de não deixar que o horror se repita.
Aqui, a jornada de resgate ao passado materializa essas vidas há muito perdidas e coloca no centro do debate as funduras dos processos de predação e expropriação causados pelos estados de exceção na América Latina.
Descobrindo a si mesmos, dinamizando as relações e percorrendo a travessia entre Chile e Uruguai de carro, Iquela, Paloma e Felipe nos dão a dimensão de como é preciso sobreviver mesmo quando não é possível e como ser testemunha das práticas de liberdade é urgente. O que se constrói é uma cartografia de afetos, uma apropriação espacial belíssima em que passado e presente precisam se trançar.
O título do livro, perfeito, mostra a obsessão de Felipe não apenas por números, mas por contar mortos, libertá-los e de alguma forma dar destinação às suas histórias. Atormentado pelo passado, o rapaz vê essas pessoas falecidas, busca honrar suas existências e na impossibilidade de dar um ritual ou uma lápide, é a literatura, no melhor jeito que Scholastique Mukasonga teoriza, que será cripta de papel para os que ficaram pelo caminho.
Aqui, mesmo dadas as diferenças entre o genocídio do Ruanda, em 94 e do qual Mukasonga é sobrevivente, e as ditaduras latino-americanas, os traumas coletivos se tocam e as necessidades de elaboração dialogam.
Alia Trabucco nos brinda com uma escrita envolvente, bem construída, pulsante, que faz ver esses 3 jovens em profunda descoberta. A jornada os levará a uma busca incessante por nomes, histórias, identidades e afetos. Descobrirão ainda que suas mães e pais tinham vida, problemas e nuanças para além das que eles conheciam.
Um exemplar belíssimo dos contornos da pós-memória, ou a literatura dos filhos, que mês que vem eu conto um pouco melhor para vocês. Um desejo de permanência pulsante, uma inscrição no corpo social e político da América Latina que me fez vibrar de emoção
Esse livro que é um primor, uma joia, uma aula sobre literatura chilena, ditadura e a necessidade de resgatar o passado, é também um jeito de fazer reverberar os ecos que tornam palpáveis as nossas dores e também as nossas lutas.
A tradução impecável é dela, Silvia Massimini Felix, rainha. E esse já é um dos meus livros favoritos da vida. Leia Alia Trabucco, por favor.
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sobre a autora:
Alia Trabucco Zerán é chilena de Santiago. Tem Pós-graduação em Escrita Criativa na New York University e é PhD em Estudos Espanhóis e Latino-Americanos pela University College London. A subtração é seu livro de estreia e, além de ganhar o prêmio de Melhor Obra Literária Inédita do Conselho Chileno de Artes em 2014, foi finalista do Man Booker International Prize.
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