As aventuras de china iron | Gabriela Cabezón Cámara 🇦🇷

Essa semana foi o dia da independência da Argentina. No entanto, sabemos que a colonização na América Latina foi predatória, violenta, cruel, e tentou dizimar povos originários com a expoliação material, física e simbólica.

O livro que escolhi falar para pensar essa data emblemática é de Gabriela Cabezón Câmara. China Iron é uma paródia, uma releitura, uma subversão dos poemas que contam a história de Martin Fierro, e que foram canonizados como mitos fundadores da Argentina.

Martin Fierro, um típico gaúcho dos pampas, é  segundo pesquisas que fiz, uma figura bastante controversa, racista e que odeia indígenas. Polêmica, porém tida como tradicional e balizada em questões colonizatórias e problemáticas.

Saber disso fez As aventuras de China Iron crescer e muito para mim, pois conpreendi o movimento de transgressão que Gabriela fez. Fato é que rememorá-lo me traz outras camadas para a obra e isso é muito muito bom.

 

No livro de Gabriela Cabezón Câmara, a história não é contada por ele, o homem doss pampas que tudo pode, mas por sua esposa China. Uma órfã, perdida no jogo pelo marido de sua cuidadora e entregue à Martin ainda adolescente para ser agredida das mais diversas formas. Uma menina cuja vida dolorosa parece não ter fim.

Reiteradamente estuprada pelo herói nacional, mãe de dois filhos, ela vê a oportunidade perfeita de fugir de sua realidade opressiva quando Martin estranhamente desaparece. 

Particularmente, não li a obra original, tudo que soube foi depois, mas teria me ajudado a contextualizar questões importantes ter feito uma pesquisa prévia. Uma vez na estrada, China encontra Liz, uma inglesa em excursão por terras argentinas em busca de seu marido Oscar.

As duas rapidamente se apaixonam e a relação delas é, sem dúvida, o ponto alto da trama. A família que se forma pelo caminho com Rosa e a cachorra Estreya é uma coisa muito bela também.

É só no encontro com Liz que China compreende que não possui um nome. Imagino aqui que o termo china,  assim como no período colonial brasileiro, é uma designação pejorativa e chula para mulheres bastante subalternizadas, consideradas cidadãs de segunda classe e à margem.

Agora chamando-se Josephine Star Iron e Tararira, a jornada se abre para China como a gestação de si mesma. Cortando suas longas tranças, a menina passa a performar um rapaz quer por segurança de sua comitiva com Liz, quer por não se identificar com a vida anterior e perceber sua subjetividade na fluidez de gênero.

E é aqui que Gabriela Cabezón agiganta a sua trama. Ela subverte tão poderosamente o mito fundador, que coloca na boca de uma mulher considerada abjeta, subalterna o poder de nos contar a história. Uma mulher lgbtqiapn+ cujo corpo, a subjetividade e a sexualidade são completamente dissidentes. E isso é muito muito potente. As aventuras de China Iron rompe com  o binarismo e o status quo, rompe com tudo o que se sabe até então da formação da argentina e, a partir daí,  conta sua própria versão.

Todos parecem fluidos em seus desejos,  cheios de camadas. Nada é superficial porque a vida é feita de tensão e contradição. Impossível não pensar que esta família nada tradicional composta por Liz, o gaúcho Rosa, a menina Jose e a cachorra Estreya não seja o vértice de uma profunda mudança.

Aliás, Estreya me lembra a Baleia de Vidas Secas e China/Josephine, quem sabe uma alusão à Diadorin, de Grandes Sertões. Estaria eu delirando? Se eu estiver certa, Gabriela conseguiu desestruturar e subverter mais dois clássicos. A mulher não para, é muito perspicaz.

Ainda sim, algumas questões me parecem angustiantes, como uma certa estereotipação do povo indígena encontrado na obra, e algumas questões terminológicas que apontam para a crítica ao racismo mas que escapam ao fazê-lo. Como se trata de uma paródia, penso que Gabriela quis justamente usar do deboche para provocar a reflexão.

As aventuras de China Iron, ao trazer um clássico para uma leitura queer que não deixa nenhum tabu de pé, é realmente ousada e potente. Vale demais a leitura. Apaixonante.


Sobre a autora

(adaptado do site da Moinhos)

Gabriela Cabezón Cámara é argentina de Buenos Aires. Jornalista, publicou diversos romances e foi finalista de prêmios como o  Prêmio Memorial Silverio Cañada, Livro da Rolling Stone Argentina de 2009 e o International Booker Prize 2020.  É também uma das fundadores do NiUnaMenos, importante movimento feminista que começou na Argentina e possui uma importância enorme na luta contra a violência de gênero na América Latina. Tem publicado no Brasil As aventuras de China Iron, pela Moinhos.

 



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