Faz tempo que li O Corpo em que nasci, da Guadalupe Nettel, mas em abril participei da minha primeira banca de mestrado como professora convidada, foi emocionante e o livro voltou para a minha vida.
É um romance que evoca e suscita muitas questões, uma autoficção em que a Guadalupe vai criar uma história baseada em experiências pessoais e que inevitavelmente passa pela composição de corpos dissidentes, como o dela, que é uma mulher com deficiência visual.
Da infância na Cidade do México, o que mais salta aos meus olhos é a relação da protagonista com Ximena, a vizinha diagnosticada com esquizofrenia, que é uma garota depressiva e que carrega em si os traumas da ditadura chilena. É impossível não lembrar de As coisas que perdemos no fogo, de Mariana Enriquez.
Tranquilamente eu digo que Ximena é a minha personagem favorita do livro. E eu acho que ela traz tantas camadas de discussões sobre ditadura, memória, linguagem pelo silêncio, medicalização e elouquecimento de mulheres como projeto, sem é claro esquecer da necessidade do sobrevivente em dizer o indizível.
Com a migração para a França, vivendo com a mãe e o irmão nas periferias da cidade para a qual se muda, Guadalupe experimenta a xenofobia, o preconceito e a certeza de que sempre será uma chicana, que modula um espanhol em dialeto do colonizado e cuja própria existência coloca em xeque os pressupostos dos colonizadores.
Mostrando os conflitos geracionais entre mulheres, a ira de Guadalupe contra sua mãe e avó me faz pensar no quanto a competição entre mulheres é importante para a manutenção do patriarcado e do capitalismo. E o quanto mulheres, ainda que reproduzam o machismo, são elas mesmas vítimas do sistema.
Me vem à cabeça o quanto é difícil ser mulher na América Latina e o quanto certas tecnologias de poder e sobrevivência balizadas em tecnologias de morte e opressão podem ser perversas.
Vivendo uma identidade de fronteira, mestiça, Guadalupe nos mostra como a falta de pertencimento e a incompreensão muitas vezes perversas ditam seu próprio jeito de ver a vida.
A grande cereja do bolo é que já conhecemos as histórias por meio da própria narradora na vida adulta, em seções de terapia em que ela abre hiperlinks e flashbacks com o passado.
Outra coisa muito poderosa é como Guadalupe dá o flow do texto, ora arrastando a narrativa para sentirmos o tédio e a dor da menina, ora acelerando em momentos de tensão.
O corpo em que nasci voltou com outras tonalidades nesta leitura e ainda que não seja exatamente o meu tipo de leitura preferida (e sinceramente não sei porque) há muito ali que precisa ser dito e cuja leitura nos faz questionar. E isso é precioso.
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sobre a autora:
Guadalupe Nettel é mexicana da Cidade do México. Autora premiada e doutora em ciências da linguage, No Brasil, tem publicados os livros O corpo em que nasci, pela Rocco; e A filha única, pela todavia.
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