11 contos de fúria e reflexão. É isso que diz o post it que colei no início do meu exemplar de Não aceite caramelos de estranhos, da Andrea Jeftanovic, que saiu pela Editora Mundaréu em 2020.
O livro remonta algumas questões que eu já tinha gostado em outra obra da autora, Cenário de guerra, e que falará sobre as contradições humanas, mas não só, ele mostra a crueza e vileza em muitos muitos momentos, com questões como incesto, morte e trauma brotando do texto. Fala também de dores individuais e coletivas, de certas fraturas e da tentativa de costurá-las.
Apesar de curto, não é um livro fácil, é um livro incômodo e, em alguns momentos, tão, tão duro que é difícil conduzir, mas vale a pena continuar.
Ainda que muita gente fale sobre Árvore Genealógica e Primogênito como contos perturbadores e muito bem elaborados, eu gostei mais de A necessidade de ser filho, O incômodo de sermos anônimos, Não aceite caramelos de estranhos e Miopia enquanto narrativas, que constroem e abrem outros hiperlinks de diálogo.
Em A necessidade de ser filho, muitos questionamentos a respeito não apenas da ditadura chilena, mas da resistência e seus legados aparecem para mostrar como os maniqueísmos nos levam a interpretações rasas da realidade. E como parecem existir ciclos, muito bem costurados, que refletem práticas reiteradas na sociedade. Belo belo.
Em O Incômodo de sermos estranhos, a tensão sexual e as camadas da solidão nos levam a pensar nos meandros da vida nas grandes cidades e na maneira como nos relacionamos. É um conto que desestabiliza por mostrar as fragilidades e os medos. É também jeito de mostrar como as relações quando saem do virtual para o real assustam, perdem o prumo, mudam o tom, e de alguma forma se ressignificam.
Em Não aceite caramelos de estranhos, eu me deparei com um dos meus maiores medos, que é o de perder meu filho e isso foi algo que me tocou profundamente. A ausência pesada, o desespero, a vontade de voltar no tempo e tentar refazer caminhos e escolhas é angustiante. Quanta sensibilidade.
E Miopia é um conto tão bem construído sobre crimes e perversidades que nos cercam que eu aplaudi ao final. Porque aqui Andrea usa a miopia da protagonista para mostrar o quanto a sociedade é cega e conivente com a violência contra crianças e adolescentes, em especial as meninas. A mesma sociedade que diz amar e proteger as infâncias ignora seus clamores e fragilidades, reiteradas vezes aplaudindo seus algozes. e tudo está posto em questão em poucas páginas tão bem costuradas.
Se no início do livro o próprio editorial nos mostra uma forma de ler a obra como se cada um dos contos "fosse uma confissão", ao longo do texto Andrea nos propõe duas formas de leitura e, para as duas, assumimos esta missão de sermos testemunhas dessas narrativas, mas não da mesma forma.
O primeiro jeito de ler é corrido, saindo de um texto a outro em sequência, mas é segunda que me chamou a atenção. Ao final de cada conto, Andrea nos presenteia com um excerto do conto que acabamos de ler para só aí iniciar o novo. O que torna possível também uma leitura desses pequenos pedaços para compreender não o todo, mas uma nova narrativa que compõe uma colcha de retalhos dessas confissões, dessas fraturas.
É quase como se existisse uma outra narrativa dentro da narrativa e eu achei isso bem genial.
A única questão que me incomodou um pouco foi a tradução do termo "caramelo". Em espanhol, caramelo, geralmente, não tem o mesmo sentido que em português. Por lá, caramelo quer dizer doce no geral e aqui foi traduzido como caramelo no sentido literal. Acho que, de alguma forma, perde a ideia pra mim construída de que nada é doce, a vida tem sido muito amarga para muitos de nós e o medo e a violência estão à espreita, a qualquer momento podemos nos perder. não sei se é preciosismo meu ou tem alguma outra justificativa, mas o incômodo veio. Nada que tenha obviamente comprometido meu amor pelo livro. Que é bem grande.
Não aceite caramelos de estranhos é realmente um texto muito pulsante e que merece ser lido aos poucos, mas que certamente ao desconfortar coloca o leitor para pensar nas hipocrisias e funduras do nosso tempo. Impossível sair ilesa, e mais, impossível sair sem refletir.
Mesmo que em alguns momentos eu veja certo exagero, sigo achando Andrea uma mestra da narrativa.
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Sobre a autora:
Andrea
Jeftanovic é chilena de Santiago. Socióloga e PHD em Literatura, é uma
autora e voz potente na literatura latino-americana, sendo questionadora
das questões políticas do Chile e do resto do continente. Tem
publicados no Brasil Cenário de Guerra e Não aceite Caramelos de Estranhos, todos pela Mundaréu, e também um dos contos de Não Aceite Caramelos de Estranhos e uma entrevista belíssima publicados na Puñado número 3, que eu amo, da Editora Incompleta.
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