Frutos estranhos

Você conhece o termo "fruto estranho"? Não? Deixa eu te contar umas coisas que eu descobri ao longo das minhas andanças e pesquisas. 

Há uns 7 anos, eu conheci a incrível professora de literatura Lucía Tennina, uma argentina que estuda literatura de um jeito muito sensível e acolhedor.

E foi aí que tive acesso à teoria dos frutos estranhos, da também argentina Florência Garramuño, e um monte de coisas sobre literatura brasileira e latino-americana explodiu na minha cabeça.

 

Era preciso desampreender e reaprender.

O que eu quero dizer com isso? Bem, a gente aprendeu na escola o que é um romance, o que é um conto, uma poema. Todos os aparatos nos foram ensinados sobre os códigos e as formas e tudo isso é verdade e muito poderoso de se conhecer.

Afinal, literatura bota para pensar e liberta. E dominar esses códigos é dominar instrumentos de poder. No entanto, existe um espectro de textos entre cada uma dessas categorias e eles também existem e precisam ser olhados e prestigiados.

E isso só foi mais bem compreendido no tempo em que vivemos, a contemporaneidade, quando percebemos que os saberes são mutáveis, cambiantes. Frutos estranhos são obras que a gente não consegue definir categóricamente: é tudo muito difuso.

Assim, o romance pode vir complementado com fotos que não são meramente ilustrativas, mas fazem parte da narrativa. Um livro de não ficção não precisa necessariamente ser um livro-reportagem. Um poema pode trazer prosa também e até investigativa. E a sociologia, a performance, o cinema e a oralidade podem borrar as construções de prosas e poesias. 

O que parece ser um imbróglio sem fim, na verdade é a possibilidade de existir para além das amarrar. É jeito de liberdade também. 

E frutos estranhos são justamente essas manifestações da arte que não se limitam a ser apenas uma coisa, mas borram as existências, mostrando as camadas e as complexidades do nosso tempo e de nós. Muito complexo? Pode até ser, mas colagem pode ser um fruto estranho, o sampler daquela música que você gosta, também.

Você já deve ter visto fragmentos de textos da internet num livro, ou uma música sendo espinha dorsal na construção de um livro de poemas e até as memórias interferindo em todo o processo de construção de uma narrativa.

É o que Flora Sussekind chama de Objetos Verbais não identificados, sim os Ovnis da literatura. De perto, ninguém é normal. Eu sei que posso ter bagunçado a sua cabeça e, talvez, a internet não seja o melhor espaço para isso, mas compreender que existem frutos estranhos me fez perceber que a literatura está muito mais próxima de nós do que imaginamos. Ainda bem!

Misturada com um monte de outras coisas, ela pode ficar mais pertinho das pessoas, que é o lugar de onde nunca deveria ter saído.

E para completar, como de costume, deixo aqui alguns livros que são frutos estranhos: Garotas Mortas, de Selva Almada, e seu processo investigativo que borra o literário; os diálogos e referências de Desarticulações, de Sylvia Molloy; a poesia narrativa e o poder de investigação de Nadine, de Luiza Romão; e tantos outros.

 

teorias usadas e ousadas neste post

 

Frutos estranhos. Florência Garramuño. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.

Objetos verbais não identificados. Flora Süssekind https://blogs.oglobo.globo.com/prosa/post/objetos-verbais-nao-identificados-um-ensaio-de-flora-sussekind-510390.html 

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