A autobiografia da minha mãe | Jamaica Kincaid 🇦🇬

Estava curiosíssima para ler Jamaica Kincaid e escolhi começar pela A autobiografia da minha mãe, publicado pela Alfaguara. Eu estava (e ainda estou) numa pira de buscar essas obras de autoras  amefricanas que tratam da maternidade ou da ausência de mães para pessoas negras. 

Assim saí de Tituba, passei por Clara da Luz do mar, Cartas para minha mãe e cheguei em A autobiografia da minha mãe e Cachorro Velho (também da Teresa Cárdenas.  


Este me parece ser um romance de formação, pois acompanhamos Xuela Claudette desde a infância até chegar na vida adulta. Uma menina que mora na Martinica e perdeu a mãe no parto e está é uma informação importantíssima (vamos guardá-la). 

O livro nos mostra como a vida dessa garota é marcada pelos efeitos nefastos da colonização e como ela tem de lidar completamente sozinha com os abusos que sofre. Seja pela rejeição da madrasta, a exploração sexual pelo casal de amigos do pai ou mesmo por não ter um pai funcional. 

Se por um lado o desamparo poderia ser um dado de fratura irreparável na vida desta garota, Xuela mostra que não aceita ser subalternizada e subverte diversas vezes as lógicas opressoras se colocando assertiva e segura de si, escapando dos lugares violentos, estudando e trabalhando. Ela não seguiria o caminho de muitas, que não tiveram escolhas, ela não seria mãe e nem se deixaria dominar. 


Lírico e pungente, o texto de Kincaid tem uma cadência diferente, sensível, mas que pode ser encarada por muitos como arrastada. Pra mim, ele tem tonalidades, cheiros e cores, quase palpáveis de um Caribe cheio de desigualdades e heranças que precisam ser problematizadas como o racismo e a colonização. 

É Saidiya Hartman que nos lembra, no já célebre livro Perder a mãe, que perder a mãe é perder as referências, a genealogia, a identidade, o lugar no mundo, aquilo que te faz sujeito, ou sujeita, no caso de mulheres. 

Mas como bem me ensinou Carol Casativa, minha amora do @encruzilinhas, essas mulheres pretas, amefricanas e afrodiaspóricas irão usar a literatura para materializar essas mães, essas ancestralidades, essas genealogias por meio da fabulação. 

É exatamente por isso que ao nomear este livro como a Autobiografia da minha mãe, Jamaica Kincaid reconta esta história. Da impossibilidade de recuperar na vida, mas da reparação que a literatura é capaz de modular. A mãe de Xuela, nossa protagonista potente, foi deixada ainda bebê num orfanato de freiras. Xuela perdeu a mãe ainda no parto e foi entregue para outra mulher criar. 


As duas se refazem, se reconstróem , por meio da literatura que retece os fios desta trama esgarçados pela escravidão e as heranças coloniais. E a partir daí podem escreve outras histórias. 

É Xuela quem resgata a mãe, de quem vê poucas partes do corpo em sonho, quase nunca completamente sinalizada no texto, mas que se materializa na filha que a conserva em si pelo desejo de memória. Uma memória que não é só do lembrar, porque, afinal, ela perdeu a mãe no parto, mas que é empenho do corpo.  

O corpo que escreve, reescreve e inscreve no corpo do texto outros desejos. Xuela desejante, intensa e potente, que não aceita ser assujeitada, que escolhe o que fazer com a própria vida, faz daquilo que é simples, e, por isso grandioso, um delicioso convite à leitura e à escuta. Que livro primoroso, Jamaica. Muito obrigada.


#literaturademulheres #literaturalatinoamericana #literaturacaribenha #autorasdeantígua #escritorascaribenhas #autorascaribenhas #jamaicakincaid #aautobiografiadaminhamãe #editoraalfaguara


Sobre a autora: 


Jamaica Kincaid é de Antígua e Barbuda. Escritora, professora e já ganhou diversos prêmios literários por suas obras potentes. Radicada nos estados unidos, dá aulas de história africana e afro-americana na Universidade de Harvard. Têm publicados no Brasil os livros A autobiografia da minha mãe e Agora veja então, pela Alfaguara; e contos na Revista Puñado, da Editora Incompleta.





Comentários