Cometerra | Dolores Reyes 🇦🇷

Eu realmente acredito que essa semana, o livro que eu tinha que trazer resenha era esse. Cometerra é um livro sensível, potente, disruptivo, intenso e por isso, Dolores, eu te evoco para estar aqui neste momento. Amo personagens bruxas, líderes xamânicas e vou contar um pouco aqui para vocês da minha jornada de reconhecimento e entrega a esta obra. 

 

Eu já tive a oportunidade de dizer que o español me salvou de muitas formas durante a pandemia. E isso é verdade demais. Cometerra, publicado pela Editora Moinhos, me emociona profundamente, não só porque ele reverbera toda a potência de mulheres latinas que estamos assistindo nos últimos anos, mas porque vem de uma experiência de leitura intensa, em que a escrita cuidadosa, que respeita o leitor, costura tantas experiências pessoais e coletivas que eu me vi, muitas vezes esperando encontrar o meu nome ou o de alguma amiga em uma das garrafas de terra recebidas pela protagonista.

 



Se a América Latina é, como eu escrevi ontem, um dos lugares mais violentos e perigosos para se ser mulher no mundo, as autoras têm respondido na mesma medida: denunciando, criticando e colocando em xeque nossas sociedades de herança escravocrata, mas que também são misóginas, lgbtfóbicas e predatórias. Não aceitamos que nos silenciem, que nos enterrem vivas.

Acompanhamos a protagonista de Cometerra em toda a sua potência, vulnerabilidade, descoberta e aprendizado enquanto bruxa, guia xamânica, que, de alguma forma, resgata a memória especialmente daquelas que se foram ou perigam se perder, para reivindicar justiça e desconstrução. Tem alguma coisa de muito especial nessa sabedoria de que a magia, a bruxaria é algo de intenção, de desejo, de trabalho e eu ainda vou escrever mais sobre isso, quem sabe para outubro?

 

"Fecho os olhos para apoiar as mãos na terra que acaba de te cobrir, mamãe, e tudo fica escuro para mim. Fecho os punhos, agarro e a levo à boca. A força da terra que te devora é escura e tem gosto de tronco de árvore. Eu gosto, ela me mostra, me faz ver"
(Dolores Reyes, Cometerra p. 9)

Uma verdadeira huesera que remontam as histórias, impede os apagamentos! E aprendemos juntas com ela mesmo, estamos em processo de, descobrindo enquanto avançamos pelas páginas.

 


 

Contraditória, humana, com medo e desejante, é também deste lugar que somos convidadas a experimentar tudo. Ao engolir terra, Cometerra preenche seu corpo com a história e a memória de outras pessoas, é cripta e veículo, ferramenta que desvela caminhos  que nem mesmo ela consegue compreender.

 
É um livro tão lírico, riquíssimo em detalhes, em que as camadas vão sendo expostas e o melhor é se deixar levar porque, vamos combinar, que escrita preciosa!

Realmente as lágrimas das mulheres, aqui, abrem as fechaduras dos mistérios, segredos das casas, das relações, colocam uma lupa sobre a violência de gênero e revelam que ainda temos muito a avançar em direitos, mas também é preciso agir, mesmo que solitariamente. Só seremos livres quando todas forem.

 

 


Compartilho aqui as duas capas porque trazem diferentes referências do texto. Na edição em português a gente perde sim a declinação no feminino (e devemos problematizar isso), as ervas, as plantas e flores, as águas das lágrimas, elementos importantíssimos para a obra, mas a terra enquanto sabedoria ancestral para a magia comum que se quer aprendizado está aqui!

A terra é um artifício literário imprescindível pro texto. É a terra da pessoa desaparecida que a protagonista come enquanto procura se entender enquanto bruxa. Busca sua própria identidade enquanto segue os rastros e vestígios de quem não deixou notícias. Quer algo mais emblemático do que a terra que alguém revolveu ser o registro material de sua existência? Palmas para Dolores Reyes que conseguiu trazer tantas metáforas diferentes num só livro.

 


Se iniciei querendo abraçar essa menina que teve a mãe brutalmente assassinada e precisou lidar sozinha com suas dúvidas e anseios, terminei querendo deitar perto dela apenas para estar em sua presença e aprender.

 
Tive a sensação de que todas essas construções imagéticas para que o livro fosse visto como um grande processo de deglutição, de estômago que trabalha num processo contínuo de construção e reconstrução é jeito de elaborar questões dolorosas, mas também de devolver ao mundo algo novo, que tem um tanto muito grande de esperança e devir.

Viva Dolores Reyes.! Viva Cometerra! Que sigamos sendo semente, resistentes e inquebráveis de nossas lutas.
 

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 Sobre a autora: 

Dolores Reyes é argentina de Buenos Aires. Segundo biografia da Editora Moinhos, é professora, feminista, ativista, amiga da Selva Almada e incrivelmente mãe de 7 filhos biológicos. Cometerra é seu romance de estreia e eu mal posso esperar pelos próximos. 


 

 

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